terça-feira, 25 de outubro de 2011

Arquitetura&Sapato


O que a arquitetura e design de calçados têm em comum?

A freqüência com que arquitetos têm assumido o projeto de calçados é significativa e o fato de enfrentarem este desafio coloca em evidência esta aproximação. Exemplos disto são os trabalhos de arquitetos contemporâneos celebrados no mundo todo, como: Zara Hadid recém contratada pela empresa brasileira Grandene e pela francesa Lacoste, Frank Ghery trabalhando para a francesa J.M. Westone); o sobrinho de Rem Koohaas, Rem D. Koohaas que também arquiteto e sócio fundador da empresa americana United Shoes. Estes são alguns entre muitos arquitetos que foram convidados a realizarem estes projetos. As similaridades entre arquitetura e calçados é assunto para Frank Ghery, que justifica seu interesse em projetá-los, em entrevista para um site especializado em moda destacou que "Sapatos são objetos arquitetônicos hoje e desde sempre”. Recentemente, esta realidade pode ser percebida com facilidade. Nas propostas de sapatos contemporâneos apresentados por designers de roupas e acessórios, existem novos sapatos, como os propostos pela estilista italiana Miuccia [Prada] que são verdadeiros edifícios. Hadid, no projeto que desenvolveu para a Grendene fugiu do tratamento do calçado como escala diminutiva. Ao contrario seu desenho foi o resultado de uma escultura em cera na proporção inversa, aumentando em dez vezes o tamanho do pé. Dessa maneira projetou um calçado que se alonga pelo calcanhar e pernas através de tiras em um único bloco. Trata-se de um sapato produzido em plástico, em que Zara dá vazão ao seu raciocínio descontrutivista¹ elaborando volumes vazados diferenciados em cada pé. 1 Descontrutivismo, termo utilizado para caracterizar o trabalho de arquitetos contemporâneos que utilizam referencias construtivistas russas da década de 20, o interesse comum é o de manipular as superfícies das estruturas e a diferença é o processo não linear de organização destas superficies.
 Grandene  e Lacoste por Zara Hadid
Rem D. Koohaas apresentou desde 2003 mais de três dezenas de sapatos com formas estruturais sofisticadas e incomuns ou solucionados em monoblocos.

 Rem D. Koohaas

Frank Ghery para JM Westone -  Miuccia Prada (coleção 2008)
 Com circunstâncias diferentes, Miuccia Prada, uma italiana simpatizante do partido comunista italiano na década de 70 e PHD em ciências políticas, herda do avô uma fabrica de malas para viagem no meio do século XX e a transforma numa das grifes mais prestigiadas de nosso tempo. Este novo negócio e a sua opção em ocupar o cargo de designer de produto são os responsáveis pela oportunidade de aproximar sua paixão pela arte e a arquitetura em seu trabalho de designer de vestuário. Este momento acontece quando Miuccia deixa de separar arte e arquitetura da moda, desconsiderando as duas primeiras como artes maiores. Em entrevista para o Herald Tribune em maio de 2009, Londres enfatiza a relação entre ambos, arte e design e que esta aproximação foi freqüentemente praticada. Lembra que a parceria de Salvador Dali com Elza Schiaparelli produziu o famoso “Lobster Dress”, obra que contribui muito para o Surrealismo. O interesse de Miuccia em aproximar estes campos de reflexão fica mais evidente com o convite que a Fundação Prada fez ao arquiteto holandês Rem Koohaas para projetar sua sede ao sul de Milão. Foi exatamente, esta experiência que a preparou para transferir aos seus sapatos princípios arquitetônicos.
Salvatore Ferragamo, um italiano radicado na Califórnia foi um dos pioneiros na concepção de sapatos considerando o universo que o rodeava. Fica extremamente interessante e estimulante observar os sapatos criados por Ferragamo e a influencia que a arquitetura e o design industrial lhes causaram. Foram inúmeras as criações de seu trabalho como designer que se inicia durante a década de 20 em território norte-americano e se transfere para a Itália no final de sua carreira². As mais diversas analogias podem ser realizadas, em seus sapatos aparecem saltos, plataformas em camadas arredondadas, esculpidas e pintadas que remetem as entradas dos cinemas americanos do período, e da influência do edifício projetado pelo arquiteto norte americano Frank Lloyd Wright para o Museu Guggenheim em Nova Iorque.
Criação de Ferragamo e o projeto da nova arquitetura do período.

A relação de Ferragamo com a arte é a das mais bem sucedidas de seu tempo, valorizou o trabalho dos artesãos de Florença, trouxe para escala de detalhe das suas peças, o olhar atento aos ornamentos da arquitetura dos suntuosos palácios do século 19 que o circundavam em Florenca; fez o mesmo com os mosaicos bizantinos, os sinuosos ornamentos da sessão vienense e as realizações do Estilo Deco. Mas a busca mais instigante na obra de Ferragamo é a aproximação com a abstração formal da Bauhaus, dos artistas gráficos cubistas e da Arte de tatuar africana. As estruturas aerodinâmicas presentes em vários dos sapatos criados por Ferragamo são versões de seu olhar interessado nos carros e aeronaves que surgiam no mundo naquele momento. Estar atento as novas formas de produção da arquitetura e do desenho industrial muito influenciou Ferragamo em transferir para a fabricação de calçados a lógica de produção moderna, divisão de tarefas, controle de qualidade, assumir a maquina como possível a produção, ele se interessou em transferir para a fabricação de sapatos as questões que a industrialização trouxe para a arquitetura e o design moderno. 2 Saltore Ferragamo falece precocemente aos 62 anos, deixando filhos e viúva jovens e motivados em continuar seu trabalho.
Desenhos de Salvadore Ferragamo.


 Fica evidente esta preocupação quando verificamos seus desenhos, são perspectivas axionométricas, interesse em antecipar a produção em escala. Ferragamo recebe grande influencia das técnicas industriais do período³. Fica evidente esta preocupação quando verificamos seus desenhos, são perspectivas axionométricas, interesse em antecipar a produção em escala. Ferragamo recebe grande influencia das técnicas industriais do período³.


3 Fordismo, preocupação de Henry Ford na fabricação em massa projetando um sistema baseado numa linha de montagem. O objetivo de Ford era reduzir ao máximo os custos da produção e assim tornar mais acessível o custo de suas produções.

Mas, objetivamente o que aproxima sapatos da arquitetura?
Ambos são vazios, são o resultado de sistemas estruturais. Os sapatos independentemente do corpo, são objetos por si só, se estruturam sozinhos. Eliel Saarinem (p. 245) em seu discurso que busca compreender como a forma aparece na arte e na arquitetura, defende: que a pintura é a arte da cor e a escultura é a arte da forma, seguindo este raciocínio define que a arquitetura é especificamente a arte do espaço. Isto pode ser perfeitamente compreensível quando os objetos são sistematizados de maneira cientifica, nomeados, gravados e catalogados.
Saarinen, agrupando todas as relações entre arte e forma, considera excelente a idéia de definir a arquitetura como a arte do espaço. Para ele é perfeitamente lógico entender que uma sala fechada nos protege e esta é com certeza a idéia principal da arquitetura. Sala fechada é espaço e este espaço resolve dificuldades de vários tipos.
 

A arquitetura nos protege assim como os sapatos também nos protegem.
Podemos ser mais generosos e perceber que espaços não são definidos somente pelas dimensões de seu interior, não se explica a presença de um espaço sem entender a estrutura que o sustenta. Assim sendo espaços são conquistas estruturais. Como na arquitetura, os calcados são o resultado de domínio estrutural.
A arquitetura vai alem de simplesmente elaborar vazios que pudessem se assemelhar a modestos quartos, produz espaços monumentais muito mais que meros abrigos. Da mesma maneira calçados podem ser muito mais que mera proteção: através da história, se transformando a cultura, são verdadeiros suporte dos valores de cada época. Exemplos de espaços como o Parthenon, o Arco do Triunfo e as pirâmides nos instigam de como a arquitetura de maneira consistente é capaz de criar padrões entre a estética arquitetônica e a história social.
Não é diferente para os sapatos, podem ter sido criados para proteger nossos pés, entretanto por séculos esta necessidade foi se transformando e cada cultura, período histórico apresentou o sapato por uma grande variedade formal provando que existe muito mais a ser considerado do que a simples proteção.
Arquitetura e sapatos se beneficiam constantemente das influencias e dos avanços tecnológicos. O aço trouxe grandes avanços estruturais. O ferro adicionado de carbono se transforma em aço e com isto aumenta em muito sua resistência a esforços. Em ambas experiências, arquitetura e calçados, este novo material fornece condições para propor estruturas mais leves e esbeltas.
É fato, que na construção Civil e consequentemente nos processos de concepção arquitetônico que se utilizam destes novos sistemas estruturais: vigas, pilares e lajes compostos por aço, sofrem diminuição significativa de peso e dimensões. Exemplo é o concreto armado que soma o aço ao concreto e desta maneira se torna bem mais leve e esbelto. No calçado incorporar conquistas de diminuição de peso viabiliza alternativas de desenho e repete conquistas como as da arquitetura. A estrutura que sustenta o pé pode ter seu arco, vazio entre o calcanhar e a planta do pé muito mais importante em largura e altura a partir do uso do aço na composição da palmilha de montagem, agora uma pequena lamina de aço incorporada ao sistema estrutural do calçado permite mais altura e menores espessuras.
O mesmo raciocínio se apropria do aço e deixa os saltos mais finos, altos. A preocupação em apresentar trabalhos com ênfase estrutural e valorizar a pesquisa de novos materiais, faz importante a produção dos designers Marlon Ten Bhomer e Gil Carvalho. Marloes é uma holandesa radicada em Londres que se graduou em Arhem e fez pós graduação no Royal College of Art em Londres. A ênfase de seu trabalho é questionar o processo criativo de calçados aproximando-o ao de um arquiteto. Os seus calçados refletem isto. Alguns de seus protótiposnão têm a preocupação prioritária em serem confortáveis; assim como poderíamos dizer da maioria dos sapatos femininos, mas as suas propostas iniciam discussões interessantes quanto a força expressiva destes produtos para a maioria das pessoas. Marloes faz uso de uma linguagem formal objetiva e pretende ser a mais abstrata possível. Marloes é responsável por introduzir um jogo de forma que explora a condição de ser a de menos comum possível ao desenho de calçados.
 

Marloes Ten Bhomer
 Estas formas são desenvolvidas como resultado de suas pesquisas tecnológicas por materiais novos. Planos de carbono é que moldam o vazio do pé e estruturam um calcado. Estes planos aparecem de maneira clara, valorizando cantos e linhas retas.
Gil Carvalho é um arquiteto português que iniciou em Portugal seus estudos de historia da arte, graduou-se em Londres e participou do curso de Design de Calçados no Cordwainers College @ London College of Fashion. Estabelecido em Londres apresenta uma coleção conceitual de calçados que explora a invenção. A coleção chamada de Visionary deixa que as questões estéticas sobreponham as funcionais. Talvez esta proposta seja mais apropriada para uma escultura que para um objeto funcional, os calçados elaborados em alumínio e elásticos tem estruturas instigantes e apresentam duas matérias nada familiares a produção de sapatos.
Conception Collection por Gil Carvalho
   A escolha revela o interesse de Gil em aproximar calçados a produtos como resultado de processos mecânicos industriais.
Por Marloes ter abdicado do conforto em seus projetos, não deveremos redimir o design de calçados desta preocupação; é claro que tem crescido a importância em projetar edifícios e calcados cada vez mais confortáveis, e desta questão poderemos evidenciar também a aproximação entre os dois campos.
Como poderemos oferecer mais conforto? Primeiro buscando nas matérias mais que simplesmente atributos da percepção visual, vamos escolher matérias que explorem o tato, o olfato; em seguida nos responsabilizarmos em qualidade, proporcionar conforto significa transmitir segurança, entrar em um recinto que me abriga, me envolve. Peter Zunthor, arquiteto suíço ganhador do Premio Pritzker, manifesta constantemente esta preocupação4·. Um calçado confortável garante humor a quem os porta. Calçados são a forma mais intima de apropriação espacial. Como gerar segurança? Zunthor discorre da importância de projetar considerando, sentindo, percebendo o interior dos espaços. Não devemos nos apaixonar pelos desenhos de arquitetura mas sim pelas qualidades reais da arquitetura. ( Zunthor. p. 67) 4 Thinking Architecture, Peter Zunthor, p. 8
O que caracteriza enfim a relação entre arquitetura e calçados é que para o projeto destes dois campos de reflexão exige-se muita capacidade de imaginação espacial: vazios, cheios, planos, profundidade; considerações quanto ao valor de proteção de ambos proporcionar conforto, capacidade de ajustar os materiais, refletir sobre os modos de produção, enfim procedimentos de síntese entre as varias técnicas que constroem estes universos. Não poderemos nos esquecer de que arquitetura e design estão intimamente comprometidos com a arte. E a arte por sua vez se coloca a disposição de apreender as mudanças de seu tempo,o artista deve questionar, verificar e pretende com estas atitudes melhorar as relações sociais. Projetar hoje significa apreender valores da nossa época e aplica-los com a melhor competência possível. Ser artista é ser visionário das transformações de seu tempo.
As experiências internacionais destes arquitetos em projetar calçados nos indagam sobre a condição brasileira. Quanto e como nossos arquitetos e designers tem se comprometido e respondido estas questões? O Brasil é o terceiro maior produtor de calçados do mundo e tem o dever de atualizar seu processo de desenvolvimento de produtos. Os benefícios que a leitura desta relação pode exercer é bastante positiva para quem pretende qualificar sua indústria ao novo momento econômico mundial; deveremos valorizar as novas sínteses e tirar proveito das reflexões entre estes e outros campos do conhecimento como valor. Os irmãos Umberto e Fernando Campana, celebrados como grandes renovadores da linguagem do design no mundo, Francesca Giobbi, arquiteta brasileira radicada na Europa durante sua graduação, Fernando Pires e o autor deste artigo entre outros contribuímos para o design de calçados no Brasil.


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